Ao final da década de 1990, depois de experiências frustradas em vários estados brasileiros de integrar e agregar valor à cadeia da carne bovina, com qualidade sensorial superior, através de incentivos fiscais para o chamado ”novilho precoce”, criadores das raças Hereford e Braford procuraram em 1998 a Associação Brasileira de Hereford e Braford (ABHB) em uma nova tentativa de integrar a cadeia. Desta vez, sem interferências ou incentivos governamentais, contando com o poder de aglutinação e fomento de uma associação de produtores e a diferenciação de qualidade sensorial advindo das raças HB.
Há quase 20 atrás, então, surgia o Programa Carne Pampa®, o mais antigo programa de classificação e certificação de carcaças e produtos cárneos para mercados consumidores em funcionamento no Brasil. Baseado em um processo de auto-regulamentação, onde através de um selo de qualidade e regulamento técnico, a ABHB atestava que a carne produzida era oriunda de animais jovens das raças Hereford ou Braford ou de suas cruzas. Uma forma de garantia de origem e qualidade do produto para a indústria e o varejo.
No decorrer de todos esses anos, outras associações de raça desenvolveram programas e selos de qualidade para os produtos cárneos provenientes de animais das raças que as mesmas representavam. Isso não só aumentou a oferta de carne de qualidade no mercado, como também criou expertise na qualidade do processamento e empacotamento da carne.
Também se desenvolveu a ideia de que há no Brasil rebanhos que produzem carne com a mesma qualidade da Argentina e do Uruguai. O cenário encorajou frigoríficos, empresas e profissionais que já atuavam no setor a investirem mais nesse nicho, explorando e incentivando a produção da carne bovina brasileira com qualidade industrial e sensorial, principalmente nos últimos cinco anos, onde foi muito ampliado o leque de consumidores da chamada carne “gourmet” brasileira.
Voltando ao início dos anos 2000, o governo brasileiro, como forma de garantia de origem para acessar mercados mais exigentes, criou o SISBOV, um modelo de rastreabilidade individual para bovinos no país. Porém, com o decorrer dos anos, o SISBOV se mostrou extremamente complexo de se implantar de forma obrigatória em um rebanho na ordem de 200 milhões de cabeças, criadas em sua maioria de forma extensiva. O país passou a adotar, então, a famosa lei “Caiado” como modelo de rastreabilidade oficial, baseado na guia de trânsito animal e marca a fogo nos animais. Lei que também criou, de forma alternativa e voluntária para rastreabilidade de rebanhos, os chamados Protocolos de Rastreabilidade de Adesão Voluntária (PRAV). Nesta configuração, o modelo de rastreabilidade é livre desde que possa ser auditável e comprovada a rastreabilidade do animal, no mínimo, por lote como previsto em lei, delegando à Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), representante do setor produtivo sem fins lucrativos, fazer a gestão destes protocolos e comprovações junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e a integração destes à Plataforma de Gestão Animal (PGA), sistema que armazena, em síntese, as informações de movimentação dos rebanhos no Brasil.
Com esse arcabouço regulatório, criaram-se as condições para que os selos de qualidade da carne, baseados em processos de auto-regulamentação, conduzidos por mais de uma década por algumas associações de raça, pudessem ascender ao patamar de Certificação Oficial Brasileira através dos PRAV. Esse processo conduzido pela Associação Brasileira de Angus, com o apoio da Federação de Agricultura do Rio Grande do Sul (FARSUL) e da ABHB, foi encaminhado à CNA e ao MAPA, e, em agosto de 2015, foi regulamentado o primeiro PRAV – o PRAV de menção de raças bovinas em rótulos – sendo as associações de criadores representativas de raças bovinas as que poderiam se habilitar a operar esse protocolo.
Esse introdutório se faz necessário para nivelar o conhecimento sobre a implantação do PRAV para raças bovinas no Brasil. Queremos “desmistificar” o sentimento de alguns setores que, em um primeiro momento, viram o protocolo como uma intromissão da CNA em uma atribuição que deveria ser do governo ou até mesmo da indústria. Anseio esse exacerbado pela necessidade de readequação da rotulagem pela indústria, pelo varejo e, até mesmo, por algumas associações que para manter a rotulagem de raças nos produtos cárneos deveriam aderir ao mesmo.
Como toda mudança, observamos, num primeiro momento, a negação ou minimização da importância do novo padrão estabelecido. Por isso, este artigo visa esclarecer, através de fatos e constatações, o benefício que o sistema trás para toda a cadeia, de forma a avançarmos para a próxima fase da mudança, a de aceitação e união em torno de uma solução única e eficiente criada aqui no Brasil, com o propósito de alavancar a qualidade da carne brasileira, principalmente em tempos de “Carne Fraca”.
Há anos, produtores reivindicam uma balança dentro do frigorífico; um modelo de classificação e tipificação de carcaças; uma correta avaliação dos parâmetros dessa classificação. Nossos certificadores estão lá, acompanhando o processo desde os currais ao abate, registrando tudo que sempre foi reivindicado pelos criadores, dentro de um padrão de classificação. Ou seja, são o “olho do criador” dentro do frigorífico, e o cumprimento desses padrões sempre é premiado pela indústria, aumentando a rentabilidade do produtor.
Para a indústria, percebemos grandes vantagens ao aderir à certificação. Uma imediata, que são algumas alterações operacionais sempre necessárias para se adaptar ao protocolo, sendo nítido o salto de qualidade obtido em pouco meses, advindo da “expertise” que adquirimos ao logo desses quase 20 anos operando em diversas plantas frigorificas. Procuramos dar a nossa contribuição para a melhoria da qualidade dos processos industriais de abate, como qualidade do frio, esfola, desossa, cortes e qualidade de vácuo. Compartilhamos ainda a nossa expertise sobre linha de produção, empacotamento, bem-estar animal e laboral, trabalhando diariamente com o setor de qualidade do frigorífico, dando uma maior segurança para seus dirigentes e gerentes de que a planta realmente está ofertando produtos cárneos de alta qualidade industrial, e não só para os enquadrados na certificação, mas em toda a linha de produtos, um ganho intangível que muitas vezes não é percebido pela indústria.
Outro efeito colateral muito benéfico ao frigorífico é a redução dos conflitos com o criador envolvendo os parâmetros de classificação das carcaças e rendimento dos animais. A aferição é realizada por uma entidade ligada à produção, ou seja, que tem o compromisso de endossar o real, sem buscar prejudicar ou beneficiar qualquer uma das partes, sempre buscando oferecer o melhor produto ao consumidor.
Para o varejo, são inúmeros os benefícios, pois ele passa a receber um produto de extrema qualidade, não só nas linhas certificadas, mas em todas as linhas comerciais do frigorífico. Também podem ser beneficiar do apelo comercial, principalmente junto aos “chefs” da gastronomia, que têm procurado adquirir produtos certificados por entidades ligadas a produção e sem fins lucrativos compromissadas com a qualidade, com garantia de procedência “do pasto ao prato”, ou seja, com qualidade industrial auditada do abate ao empacotamento.
Por fim, percebemos o desenvolvimento de uma nova visão do produtor, que, como consumidor, também passou a fazer o papel de divulgador e auditor nas gondolas e restaurantes onde ele encontra o produto que cria na fazenda, fazendo um “feed-back” à associação de como está a qualidade do produto encontrado. Assim, todo o processo de qualificação da carne se fecha e se retroalimenta.
Vale ressaltar que o PRAV é uma ferramenta moderna, integrada à Plataforma de Gestão Agropecuária do MAPA com mesmo status do SISBOV (ou seja – faz parte da Certificação Oficial Brasileira), criada com o intuito de dar transparência e estreitar a relação entre produtores rurais, CNA, inspeção oficial, frigoríficos e consumidores, onde todos podem, através da internet, ter acesso às mais diversas informações sobre seu funcionamento.
Entendo que já é hora dos mais diversos elos da cadeia (produtor, indústria, varejo e governo) procurar entender melhor os benefícios que os PRAV podem trazer no processo de melhorias da qualidade da carne brasileira, e apoiar sua expansão, já que o modelo, também, pode ser estendido a outras associações de produtores que provem ter a “expertise”, a idoneidade, a representatividade e sejam legalmente habilitadas para realizar a identificação de uma qualidade para carne bovina produzida (precoce, natural, a pasto, com origem, etc.) e que os mesmos não foram criados para se restringir ao grandes conglomerados frigoríficos, pois podem facilmente ser implantados, e com baixo custo, em indústrias frigoríficas de porte médio ou pequeno, operando com inspeções estaduais, SISBI ou até mesmo municipais. O caminho está pavimentado, só nos falta percorrer!
Fernando Lopa
CEO ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HEREFORD E BRAFORD